A armadura do Rei Português que está em França

A notícia que se reproduz parcialmente a seguir foi originalmente escrita por Anton Stark para a Página Repensando a Idade Média.
Visão de corpo inteiro do arnês, sem os elementos de reforço. Retirado de Musée de l'armée, Paris: Les armes et la vie, p. 121.
"A armadura desconhecida de D. Manuel I: o arnês do Musée de l'Armée

Caros leitores, é com prazer que hoje lançamos para vosso conhecimento alguns resultados muito preliminares da investigação, ainda em fase de pesquisa pré-artigo, do nosso colega Anton Stark sobre uma armadura de Manuel I (r. 1495-1521) no Musée de l'Armée, em Paris. Este arnês, infelizmente desconhecido tanto do grande público como da maioria dos peritos em História Militar (!), merece toda a nossa atenção, devido às informações importantes com que contribui para o conhecimento do armamento régio em finais da Idade Média. Todos os parabéns ao nosso co-administrador! :D
Está guardada numa grande vitrine, na secção de armaduras do século XVI do Musée de L’Armée, em Paris. Um contorno relativamente sombrio e até algo desengonçado, um entre demais, não fosse o elevado grau de decoração ou, pelo menos, a placa indicativa onde se lê: “Armure dite d’Emmanuel ler, dit le Fortuné, roi du Portugal (1496-1521)”. Porque é efectivamente de uma armadura ligada a D. Manuel de que estamos a falar. Mas o que faz um arnês real português em França? E, melhor ainda, porque é que ninguém sabe dele por cá?
 
Pormenor da esfera armilar, no coxote esquerdo. Retirado de Musée de l'armée, Paris: Les armes et la vie, p. 121.
A Garnitura
O arnês que nos encara do outro lado do vidro é uma peça de produção italiana, da mão do mestre armeiro Nicolau ou Niccolò Silva (activo entre 1511 e 1549, segundo os arquivos históricos de Milão). A punção (marca) de armeiro patente no arnês não nos deixa margem para dúvidas. Este conjunto é, aliás, um dos únicos quatro arneses de Silva que chegaram até nós, todos eles reunidos – vá-se lá saber por que voltas do Destino - no Musée de l’Armée. Arnês… não bem; ou, não apenas. O conjunto é sim uma “garnitura”, ou seja, um arnês com peças adicionais, adaptável ao combate de campo ou à participação nas lides cavalheirescas – torneios, jogos militares e equestres, paradas -, consoante a necessidade. Apesar de italiano, o conjunto não deixa de apresentar algumas influências alemãs, perfeitamente naturais neste período de confluências na armaria europeia. Tal como se nos apresenta hoje, o arnês integra um elmete com gorjal integrado, espaldeiras (tipicamente italianas - assimétricas, a mais pequena no ombro direito e a maior no esquerdo, com um reforço de pescoço), rerebraços, codais, avambraços e guantes pesadas; couraça sem panceira mas com riste, fraldão e escarcela conjuntos, com o aspecto de uma saia de escamas; coxotes, joelheiras, grevas e sapatos-de-ferro. A isto se juntam uma placa de reforço do peito, belíssimamente decorada com um padrão circular de 24 raios; cotoveleiras de reforço, uma joelheira e restos de uma escarcela direita. É um autêntico puzzle, portanto, a ser montado e desmontado de diferentes maneiras de acordo com o uso a que se destina.

Como seria de esperar numa peça destas, e desta época, há decoração para dar e vender – e ainda bom dinheiro daria, considerando que muita dela consiste em gravações a ouro. A mestria burilada dos artesãos milaneses brilha em quase todas as superfícies, mesmo onde o polimento foi recoberto e desbotado pela patina dos anos. Particular destaque deve ser dado às guantes, com o seu esquema decorativo de floreados sobre o simples relevo de aço; e aos coxotes, as placas que cobrem a perna das virilhas ao joelho: aqui se retratam vários episódios religiosos ou mitológicos, muito ao gosto do Renascimento Italiano, incluindo cenas da vida de São João Baptista, por exemplo, ou uma gravação relativa a Orfeu. Ao longo das bandas laterais das escarcelas, por entre arabescos, encontramos finalmente a esfera armilar que nos permite ligar de forma praticamente irrefutável esta armadura a D. Manuel I. (...)"

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